domingo, 25 de junho de 2017

Lutero: Atleta de Cristo


Lutero: Atleta de Cristo
P. em. Dr. Martim N. Dreher (Portal Luteranos
Lutero teve formação como monge. Quis ser obediente, pobre, casto, afastar-se do mundo e rezar. O mosteiro era ilha isolada. Havia obediência aos superiores e o monasticismo tinha longa história. Foi dos grandes poderes do Ocidente. Mas teve seu fim com o movimento de Lutero. Ordens religiosas continuaram a existir após a Reforma, mas não tinham mais a importância de outrora.
O monge assumia a castidade e negava a sexualidade. Rompia com o temporal, dedicando-se apenas à contemplação do Eterno. Não fazia mais parte da história de gerações: não gerava filhos. Após anos de isolamento monástico, Lutero ficou confuso ante o mundo e seus desafios e ansiou pela tranquilidade do mosteiro.
Os primeiros eremitas eram “anacoretas”, pessoas que fugiam dos pesados impostos, se ocultavam no deserto, onde polícia alguma se aventurava a procurá-los. Não produziram livros. As informações que temos deles vêm de lendas. No deserto, rezavam e dedicavam-se a tecer esteiras. Únicos companheiros eram os demônios que os visitavam com frequência, pois a ascese não evitava as tentações. E eles queriam ser tentados. Pediam pela graça de poderem morrer pela espada, mas os demônios preferiam torturá-los e matá-los lentamente. Sangravam a alma ao invés do corpo.
Tortura preferida dos demônios era a sexualidade. Desde os monges egípcios a humanidade passou a considerar mulheres como a origem do mal. Essa ideia tomou conta do cristianismo. As tentações de Santo Antão, para o qual o diabo sempre se apresentava na forma de bela mulher, foram lidas nos mosteiros. O antifeminismo tem sua história, e em seu decorrer foi amenizado pela devoção a Maria. Mas não desapareceu por completo e se manifestou especialmente nas Regras das Ordens Religiosas. A regra dos agostinianos considerava pecado fitar mulher, e os confrades estavam obrigados a denunciá-lo, seguindose: prisão com os pés algemados, a pão e água.
Lutero afirma não ter olhado para mulher nem mesmo quando lhe ouvia confissão. Estava mais preocupado com outra questão. Não era muito chegado a visões e arrebatamentos, oferecidos pela mística da época, com suas fantasias sexuais, nas quais o noivo Cristo era beijado, e acariciado em casamentos místicos. Lutero não seguiu essa tendência. O pouco tempo em que “namorou” com a mística alemã, foi quando buscava acesso direto a Deus.
Para Lutero, “libido” envolvia o ser humano como um todo e toda a sua vida. “Carne” é a pessoa com todas as suas qualidades que são o contrário de uma alma que busca Deus. Quando fala de sua tentação, fala de ira, impaciência, cobiça. Jamais vai dizer que a libido é a maior delas.
Lutero está repetindo a relação dos sete pecados capitais segundo o catálogo de monges que buscavam vida perfeita diante de Deus: soberba, inveja, ira, indiferença, avareza, gula, luxúria. Após o vício maior, a soberba, seguem os vícios da área espiritual e, depois, os três vícios da vida corporal. Não recitava todos eles. Muitos não lhe diziam respeito por estar no mosteiro. O que mais o marcou talvez tenha sido a “indiferença”, relacionada à hipocondria. Lutero enfrentou muita depressão. Além disso, tinha explosões de “ira”, mas logo buscava reconciliação.
A soberba vinha à frente dos pecados. Dava origem aos demais. A soberba se manifestava, quando o eremita se distanciava do mundo e das pessoas. Buscava conseguir primazia em relação aos demais mortais. Poucos seriam os perfeitos, muitos os fracos. A soberba se manifestava na ascese dos pais do deserto. Foi no deserto com suas altas temperaturas durante o dia e o frio gélido das noites que se desenvolveram as mais absurdas formas de monasticismo. Ascese era, originalmente, designação para o treinamento dos atletas profissionais. Por isso, os primeiros eremitas designavam-se de “atletas de Deus” e travaram verdadeiras competições entre si para ver, quem atingia os mais altos índices. Os primeiros deles até que foram comedidos. Não tinham Regra e não estabeleceram castigos, quando começaram a se reunir em comunidades. Só queriam ser diferentes dos pagãos. Usavam vestes escuras para se diferenciarem dos filósofos gregos que usavam manto branco. Também descuidavam do corpo. Em seus dias as pessoas ricas da Antiguidade passavam o dia em banhos e saunas. Os eremitas só consumiam um mínimo em alimentos. Em breve, porém, alguns deles passaram a serem considerados heróis, taumaturgos e exemplos que estabeleciam recordes ascéticos. O primeiro desses recordes a ser estabelecido era o da solidão. A curiosidade das pessoas do mundo urbano que os visitavam no deserto queria mais. Por isso, alguns “atletas de Deus” amarraram pesadas correntes ao corpo, fazendo se enterrar. O auge entre essas figuras foi estabelecido por Simão, o estilita. Pessoa de saúde admirável, primeiro fez-se enterrar por dois anos; depois, subiu em coluna de vinte metros de altura, sobre a qual passou os últimos trinta anos de sua vida. Na pequena plataforma no alto da coluna, Simão orava e fazia genuflexões. Um admirador tentou calcular quantas teriam sido. Com elas estava mais próximo a Deus. Após sua morte, muitas construções surgiram em torno da coluna. Simão foi utilizado pela igreja por representar exemplo de vida cristã. O cálculo dos exercícios desse “atleta de Cristo” motivou críticas de Lutero.
No deserto surgiu o mosteiro com Regra, sob a direção de um Abade e atividade produtiva. Preguiça deveria ser eliminada. Eremitas teciam esteiras. Os mosteiros variaram a produção. O organizador do primeiro mosteiro, Pacômio buscou por “ordem” num mundo em “desordem” e se tornou protótipo. E os mosteiros se transformaram em importantes centros de produção. Além disso, tornaram-se centros de cultura e de preservação, em oposição aos eremitas que a negavam. O monge tinha que ler e escrever, decorar a Bíblia. Estabeleceram-se regras, disciplina supervisionada. Foi nesse tipo de mosteiro que Lutero ingressou.
Lutero se desenvolveu nessa mais antiga forma de vida cristã. Movimentos reformatórios sempre de novo invocaram os primórdios do cristianismo, se bem que pensassem nas formas anteriores ao surgimento de eremitas e mosteiros. Lutero estava convicto de que acontecera crescente “decadência” e que era necessário retorno às origens.
 “Reforma” foi conceito que acompanhou a história dos mosteiros, que é contada em ciclos de “decadência” e de “reforma”. Quando Lutero ingressou na Ordem dos Agostinianos esta se encontrava dividida. Havia grupo que exigia reforma e outro que se lhe opunha. “Obediência” era um dos votos dos monges. Ela era prestada em relação ao superior da ordem, mas não impedia desobediência em relação a outras instituições como o papado. Até os dias de Lutero, os agostinianos se vangloriavam de ser a ordem mais obediente e de jamais haverem produzido um herege.
“Pobreza” era outro dos votos. O monge era pobre; o mosteiro era rico. Grande era considerado o abade que fosse grande administrador, fazendo crescer o Reino de Deus. Os mosteiros medievais preservaram a Antiguidade, quando as ordens bárbaras invadiram a Europa. Essa preservação manteve o que de mais precioso foi criado pelo ser humano. Também contribuíram para o progresso econômico das regiões em que se estabeleceram. Secaram pântanos, dominaram florestas, conformaram a Europa, hospedavam viajantes, cuidaram de enfermos. Mas não eram pobres. Patrocinavam as artes. Foram proprietários de grandes
extensões de terras. Alguns abades eram designados de príncipes e viviam como se o fossem.
Não havia pobreza no mosteiro de Lutero. Os agostinianos não eram tão ricos quanto os beneditinos, mas tinham posses. No século XVI, a acumulação de bens e de privilégios de parte dos mosteiros era tão grande que um reordenamento se fazia necessário. Do lado da igreja se falava na “ganância” do Estado, do lado do Estado se falava na “ganância” da igreja. Os agostinianos eremitas detinham 103 mosteiros na Alemanha.
O de Erfurt existia desde 1256. Lutero trajava-se com o hábito negro, preso com cinto de couro preto. Sobre ele vestia escápula branca. Camisa de lã servia de camiseta. Durante a noite vestia escápula com touca branca. Lutero usou o hábito negro muito tempo após haver rompido com Roma. O mosteiro de Wittenberg foi sua residência até à morte.
No mosteiro, foi “o monge” como se o imagina: foi tentado pelos demônios e acossado pelos pecados da soberba, da ira, da tristeza e do coração indeciso. Observou os votos monásticos, menos um: o da obediência. Não foi atleta de Cristo, não estabeleceu recordes ascéticos, não foi santo, sua ordem não os tinha. Queria algo bem simples: um Deus misericordioso. Sua desobediência consistiu em procurá-lo por caminhos diversos dos oficiais. Nisso consistiu sua heresia.
O autor é Pastor e Professor
emérito da IECLB, residente
em São Leopoldo/RS

Nenhum comentário: