quinta-feira, 29 de maio de 2008

Entrevista com Os Guinness


Por diversas vezes, a Bíblia fala de profetas não apenas como homens que previam o futuro – mas também em referência àqueles com capacidade de discernir seu próprio tempo e chamar as pessoas à ação. Neste sentido, o cientista social Os Guinness bem pode ser considerado um profeta dos nossos dias. Filho de missionários ingleses, Guinness nasceu na China de cultura budista durante a Segunda Guerra Mundial. Com o advento do regime comunista, teve que partir para a Europa. Ali, na Universidade de Oxford, no Reino Unido, teve contato com a contracultura e o secularismo. No meio do caldeirão de manifestações filosóficas e comportamentais, Guinness conheceu Jesus Cristo como Salvador. Foi a partir dali que sentiu-se motivado a colaborar para pôr ordem no caos de uma era de confusão moral. “Apenas o cristianismo dá uma visão de mundo que oferece soluções coerentes e definitivas para as incertezas que estamos atravessando”, pontifica o estudioso. “Por isso, o cristão não pode ter medo de engajar-se no debate dos problemas mundiais”, diz ele.
Hoje morando nos Estados Unidos e com mais de vinte obras de grande sucesso internacional publicadas, Os Guinness se tornou um dos principais apologistas cristãos da atualidade. Com uma bagagem que poucos têm, ele consegue fazer pontes entre as áridas e complicadas teses acadêmicas e a prática diária. Em setembro, Os Guinness esteve pela primeira vez no Brasil a convite da Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, para participar de um congresso internacional sobre ética, cidadania, religião e cultura. Durante um intervalo entre as muitas palestras sobre os efeitos da globalização e de como pode ser repensada a relação entre a vida pública e a religião, ele recebeu CRISTIANISMO HOJE para esta entrevista exclusiva:
CRISTIANISMO HOJE – Como o senhor define “a jornada”, um conceito que tem utilizado em seu livro O chamado? Ela é pessoal ou universal?
OS GUINNESS – Jornada é a mais profunda ilustração humana na busca pelo sentido da vida. Basta verificar grandes histórias de jornadas – o Êxodo, a Odisséia, a Ilíada, Dom Quixote, O Peregrino... Todas elas têm em comum a busca por significados. Eu divido a jornada em quatro fases. A primeira é a do questionamento. É a busca consciente. A segunda fase é a das respostas, e eu considero que a fé cristã é a única crença a apresentar uma resposta adequada para essa busca. A terceira etapa é a das evidências. Já que as respostas nos dão sentido, queremos então saber o que é verdade. E, por fim, a última etapa da jornada é aquela que leva ao compromisso. A noção de jornada é a mais profunda ilustração de como as pessoas vêm e se encontram na fé cristã.
Como foi a sua jornada pessoal?
Meus pais eram missionários na China e eu nasci lá. Ainda criança, tive que deixá-los e seguir para a Inglaterra por causa dos comunistas. A minha própria jornada para a fé foi uma travessia intelectual. Comparei os argumentos de autores como Nietzsche, Jean Paul Sartre e Camus, os grandes ateus dos séculos 19 e 20, com os de grandes pensadores cristãos, como Dostoievsky, Chesterton e acima de todos C.S. Lewis. Ao final de minha busca, eu estava certo de que a fé cristã era de fato verdadeira.
E a partir de quando sua vocação se cristalizou?
Eu vim a Cristo em 1960. Na época, eu estava na universidade, em meio à ebulição da contracultura. Havia os filmes de Bergman e Fellini, assim como os protestos em Berkeley. Era difícil contextualizar isso tudo como cristão – mas foi aí que conheci Francis Schaeffer. Ele estava justamente empenhado em juntar os pontos, mostrando como não só a fé tinha sentido, mas a política, a arte, a filosofia... Ele me ajudou a entender que, se pensarmos de maneira cristã, ou seja, dentro de uma moldura bíblica, é possível entendermos os sinais de nosso tempo. O problema é que a maioria dos cristãos tem uma visão errada do que os cerca. Eles têm a teologia e a filosofia corretas, mas sua visão de mundo é estática – quando as Escrituras apresentam uma dimensão do tempo, da geração do agora. E um dos exemplos positivos que temos são os homens de Isacaar, cujas ações são relatadas no livro das Crônicas. Eles liam os sinais do tempo, para que Israel soubesse o que fazer.
O senhor se considera um sucessor de Francis Schaeffer?
Eu devo a Francis Schaeffer a visão e a paixão que me norteiam – e eu devoto muita seriedade àquilo que aprendi com ele. Schaeffer levava Deus a sério, assim como levava as pessoas e a verdade a sério. Sim, eu devo a ele esse respeito, pelo exemplo que deixou. Mas em termos de conteúdo e de pensamento, eu não o sigo. Sou um cientista social, e meu mentor nas ciências sociais é Peter Berger, e não Francis Schaeffer.
Por que alguns setores mais conservadores demonizam autores como Kierkegaard e Bonhoeffer? Será que não podemos aprender com eles?
Claro que podemos. E esta é uma área em que Schaeffer exagerou um pouco e fez muito estrago. Ele atacava Soreen Kierkergaard ou Karl Barth por causa de algo particular na sua posição geral – e isso foi um erro. E aí ele dispensava todo o conteúdo do autor, o que é perigoso. Kierkergaard pode ter coisas que não concordamos, como o seu salto de fé, que é muito subjetivo. Mas devemos lembrar que ele atacava a religião seca e abstrata de seu tempo. A mesma coisa é verdade em Bonhoeffer, Barth e outros. A igreja nos seus primórdios, tinha uma pequena frase que dizia: “Toda a verdade é a verdade de Deus”. Então devemos ser os primeiros a reconhecer a verdade. É claro que se um irmão cristão estiver certo, como Kierkergaard, devemos rapidamente reconhecer seu lado certo, não focar sua fraqueza. Mas devemos fazê-lo com discernimento.
E hoje o senhor ainda segue essa vocação em seu trabalho?
O meu chamado é, de um lado, fazer com que o Evangelho tenha sentido para os que estão no mundo, ou seja, do lado de fora da Igreja. Por outro lado, quero fazer com que o mundo faça sentido para os que estão dentro das igrejas. Eu sou um apologista e um analista. Creio que vivemos um período crítico não só na história em geral, mas especificamente na história do cristianismo.
Recentemente, morreram Jerry Falwell e James Kennedy, dois ícones do evangelicalismo americano. Eles eram representantes da chamada direita cristã e incentivavam a participação política da Igreja. Essa escola ainda influencia os crentes dos Estados Unidos?
Se você pegar os últimos 50 anos nos Estados Unidos, existem dois extremos que os evangélicos abraçaram. Um é o extremo privado – a fé, nesta concepção, é vista como algo extremamente pessoal, e, portanto, publicamente irrelevante. E isso foi o que aconteceu com a maioria dos cristãos americanos. Infelizmente, eles dormiram ao longo de toda a década de 1960, o período mais crucial da história do país no século 20. Quando acordaram, lá por meados da década seguinte, foram para o outro extremo: adotaram uma fé politizada e confiaram aos políticos mais do que eles podem fazer. Sob muitos aspectos, isso levou a fé cristã americana a se tornar serva do Partido Republicano.
Qual é o perigo disso?
Essa atitude da direita cristã, sua subserviência ao republicanismo, criou uma resistência contra a religião de uma maneira geral, e especificamente, em relação ao Evangelho. Agora, sob a presidência de George W. Bush, essa resistência chegou ao seu mais alto grau. As pessoas dizem assim: “Se Bush é religioso, eu não quero ser religioso”. E o fato é que aqueles que apoiaram Bush e ajudaram a elegê-lo – os evangélicos – agora estão pagando por esse erro. Eu argumentaria que o cristão deveria estar engajado politicamente, mas nunca abraçado e unido a um partido ou ideologia. O maior de todos os políticos evangélicos foi William Wilberforce, um conservador que, apesar disso, votou contra seu próprio partido quando concluiu que ele estava errado. Ele nunca foi um homem do partido; e antes de mais nada, era um homem de princípios, que agia de acordo com sua consciência cristã. Nos Estados Unidos, os cristãos têm que se libertar das algemas do Partido Republicano. Agora, seria igualmente horrível ir para o outro lado e fazer a mesma coisa em relação aos democratas.
O que aconteceu com a sua igreja nos Estados Unidos?
Nós rompemos com a Igreja Episcopal dos Estados Unidos e com seu mais extremado líder, o bispo John Shelby Spong. Ele não acredita em nenhum artigo do Credo Apostólico, mas ainda assim se mantém como líder da Igreja. E lá você vai ver heresia, apostasia e paganismo. A nossa igreja, com muita tristeza, se desligou da Igreja Episcopal – e acabamos nos unindo à Igreja Anglicana da Nigéria. Ora, são cerca de 20 milhões de anglicanos na Nigéria. Eles são evangélicos, são ortodoxos, pois crêem nas Escrituras. E eu sou um anglicano, mas um anglicano ortodoxo. Um anglicano evangélico. Evangélico e reformado, se você preferir.
Madre Tereza de Calcutá, considerada por muitos católicos uma espécie de “santa” contemporânea, revelou em suas cartas, hoje transformadas em livro, suas dúvidas e angústias acerca da própria fé. O senhor também escreveu sobre isso. Qual é a natureza e o papel da dúvida na vida do cristão?
Eu já escrevi sobre a dúvida porque muitas pessoas com quem conversava se sentiam culpadas por terem dúvidas. Elas pensavam que dúvida é a mesma coisa que descrença – e não é! No grego, no hebraico e em quase todas as línguas do mundo, dúvida significa algo como o meio do caminho entre a fé e a descrença. Fé significa estar convencido de algo; descrença é não acreditar absolutamente em algo. Ora, a dúvida é o meio de caminho. A dúvida, em si, não é descrença – mas precisa ser resolvida, porque poderá se transformar em descrença. Nos meus livros, tento apresentar as diferentes maneiras pelas quais temos dúvidas e o que fazer para resolvê-las. Praticamente todo mundo tem uma dúvida em algum momento da vida; o mais importante é tornar as pessoas libertas para que compartilhem suas dúvidas. Então, devemos ser honestos sobre isso e compreender que o mais importante é saber resolver as dúvidas e voltar a ter uma segurança plena de fé.
Uma de suas mensagens diz que a maior objeção para a fé cristã são os cristãos. Como assim?
A coisa que faz com que os não-cristãos fiquem mais enojados com a nossa fé é a hipocrisia. É a atitude daquelas pessoas que dizem uma coisa e praticam outra. Neste sentido, a hipocrisia tem sido o grande obstáculo à fé. E ninguém teve uma posição mais contrária à hipocrisia do que Jesus – então, quando nós, que dizemos ser seguidores de Cristo, somos hipócritas, estamos traindo tudo aquilo que o Mestre nos chamou a ser. Erasmo, no tempo da Renascença, disse: “Se quisermos levar os turcos para Cristo, precisamos, antes de mais nada, sermos cristãos nós mesmos”. Hoje, ocorre a mesma coisa. Toda vez que um cristão não vive no padrão de Jesus, estamos vulneráveis à acusação de hipocrisia.
No contexto atual, qual é o futuro que se vislumbra para as denominações protestantes como instituições?
Há uma resistência às instituições hoje. No mundo globalizado, as nossas instituições – incluindo a família e a Igreja – estão claramente perdendo a força. Talleyrand, um político francês do século XIX, disse que, sem indivíduos, nada acontece; mas sem instituições, nada permanece. Hoje, muito se fala da fé dos sem-igreja, e isso acaba levando a uma espiritualidade muito ruim e contrária à Bíblia. Muitos cristãos, sobretudo os jovens, têm uma percepção equivocada daquilo que devem almejar. As pessoas dizem: “Posso adorar a Deus num campo de golfe da mesma maneira que na igreja”. Sem dúvida. Mas esse tipo de fé, além de não ter respaldo bíblico, não tem força – é como um cogumelo que cresce na madrugada e de manhã já desaparece. A Igreja é uma instituição da qual precisamos; porém, a Igreja institucionalizada está perdendo sua verdade. Nós precisamos de uma instituição com verdade, com vida. Precisamos, portanto, de uma reforma das instituições.
Em sua opinião, os cristãos estão deixando um vácuo na sociedade?
O problema não é bem esse. Não é que os cristãos não estejam aonde deveriam estar; o problema é que eles não são o que devem ser, exatamente onde estão. E precisamos de cristãos que saibam como aplicar o senhorio de Jesus e fazer a integração de sua fé em cada parte, em cada esfera da vida. A fé de cada um precisa ser integrar ao todo de sua vida. Os crentes devem viver de maneira cristã, devem trabalhar de maneira cristã. Quem é advogado e conhece Jesus deve exercer a advocacia de maneira cristã. Isso vale para qualquer um que professe fé no Salvador – o médico, o técnico da computação, o lixeiro. Só assim teremos chance de ser sal e luz e ganhar de volta a cultura. Infelizmente, o número de cristãos que pensam é uma minoria. Nas Escrituras, temos o mandamento de amar ao Senhor nosso Deus com todo o nosso entendimento. Mesmo assim, muitos cristãos simplesmente não pensam. Dessa forma, nunca conseguiremos ganhar o mundo moderno, a não ser que tenhamos uma geração que aprenda a pensar biblicamente e de maneira cristã.
Em que dimensão a fé cristã contemporânea sofre influência pós-moderna?
Esse pós-modernismo tem raízes em Nietzsche e outros pensadores tremendamente anticristãos. O que é mais chocante é que o pós-modernismo tem muita força entre os evangélicos na Inglaterra e nos Estados Unidos, bem como em outras partes do mundo – e, pelo que ouço falar, aqui no Brasil também. É irônico porque floresce na França nos anos 1960 quando não havia terreno para crescer na Alemanha do pós Guerra. Daí quando perde força na França, ela floresce nas universidades americanas – bem quando as universidades francesas já tinham abandonado essas idéias. Mas o que é mais terrível ainda, é que agora está florescendo entre os os cristãos em boa parte do mundo. E isso no exato momento em que essas idéias estão morrendo nas universidades americanas. Conhecemos o principio do mercado de investimentos: compra-se na baixa, vende-se na alta. Se você quer fazer lucro, jamais poderá comprar na alta e vender na baixa. Mas os evangélicos têm esse habito estúpido de abraçar as idéias bem quando elas estão moribundas. E são sempre as últimas pessoas acreditando nessas idéias passageiras. O pós-modernismo é profundamente anti-bíblico. É o grande perigo que ronda a fé cristã hoje.
Qual o antídoto contra isso?
O antídoto é um entendimento biblicamente pleno da verdade, da Palavra e do Espírito. E eu espero que o colapso do pós-modernismo crie um vácuo e que a fé cristã seja suficientemente forte – cultural, intelectual e teologicamente – para ocupar esse espaço e fazer a diferença.
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