Josué Sylvestre
Pesquisando
sobre os primeiros mártires da fé evangélica no Brasil, entre as surpresas que
a garimpagem histórica me reservou, a mais significativa foi, com certeza, a
descoberta de um autóctone paraibano como protomártir brasileiro do Evangelho.
Sua execução ajunta-se ao sacrifício dos huguenotes franceses Jean de Bourdel,
Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon e Jean Jacques Le Balleur (o João de Bolés),
mortos no Rio de Janeiro. Os três primeiros, em 1558, sob a responsabilidade
ignominiosa do "Caim da América" — Nicolau Durand de Villegaignon: o
último, em 1567, por decisão do governador-geral Mem de Sá, com a participação
pessoal do padre José de Anchieta, conforme pesquisa do Rev. Dr. Álvaro Reis.
Mas o holocausto de Pedro Poty, 85 anos
depois, tem um relevante diferencial. Os outros eram estrangeiros. O índio
potiguara era um filho da terra.
A
primeira vez que tomei conhecimento da existência e do testemunho de Pedro Poty
foi através de um trabalho de muita lucidez e perseverança, organizado pelo
pesquisador e escritor Álvaro Jorge Ribeiro, autor da História da Igreja Presbiteriana
da Parahyba.
Ali
encontrei uma preciosa — embora concisa — narrativa, com remissão creditada ao
notável historiador paraibano Horácio de Almeida que, no seu livro A
História da Paraíba — Volume I, conta a saga impressionante de Pedro
Poty, arrimado em longas pesquisas realizadas em arquivos holandeses pelo
diligente historiador pernambucano Pedro Souto Maior.
Cultura e religião - O historiador José Fernandes de Lima,
que
não era protestante, descreve no seu discurso de posse no Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba, em solenidade
ocorrida em 1971, a sequência dos episódios que envolveram e transformaram a trajetória
de Pedro Poty.
1)
Poty foi levado
para a Holanda, com outros companheiros, lá estudou o idioma da terra e foi
instruído na doutrina da Igreja Cristã Reformada. Ficou na Europa, de 1625 a
1631.
2)
Voltou falando e escrevendo corretamente o
holandês, manteve-se fiel aos seus protetores e, sobretudo, à fé evangélica,
que havia adotado.
3)
Por sua cultura,
coragem, fidelidade e prestígio entre os de sua gente, foi designado, pelo
Supremo Comando Holandês, Regente dos Índios da Paraíba, enquanto Antonio
Paraupaba liderava no Rio Grande do Norte.
4)
No curso das hostilidades entre Portugal e
Holanda, recebeu várias cartas de seu primo Felipe Camarão, líder do apoio
indígena aos lusitanos, que lhe encarecia adesão e prometia recompensas e
prestígio se passasse para o seu lado.
Firme,
leal e convicto de que estava defendendo a melhor opção para a sua gente e seu
país, respondeu:
Eu me envergonho da nossa família e
nação ao me ver sendo induzido por
tantas cartas vossas à traição e deslealdade, isto é, a abandonar meus
legítimos chefes, dos quais tenho recebido tantos benefícios.
Na
continuação de sua carta a Felipe Camarão, procurando esclarecer e justificar
seu posicionamento espiritual, Por afirma com plena convicção:
Sou cristão e melhor do que vós; creio
só em Cristo, sem macular a religião com a idolatria, como fazeis com a vossa.
Aprendi a religião cristã e a pratico
diariamente, e se vós a tivésseis aprendido não serviríeis com os pérfidos e
perjuros portugueses, que apesar das promessas do rei e de juramento feito por
ele, depois de roubarem os bens dos holandeses, vêm atacar traiçoeiramente a
esses e a nós mesmos; mas hão de receber o devido castigo de Deus.
Tortura e morte - O sofrimento e a execução de Pedro Poty são
registrados por Fernandes de Lima, baseando-se em descrição de Antônio
Paraupaba (que após a rendição dos batavos foi com eles para a Holanda, em
1654).
Diz
o historiador paraibano:
Correram os tempos e em janeiro de 1654
os holandeses foram expulsos do Brasil. Em agosto desse mesmo ano, Antonio
Paraupaba foi para a Holanda.
Formulou o chefe indígena dois memoriais sobre a situação dos índios
após a expulsão dos holandeses.
Em um deles, narra o martírio e o
heroísmo de seu companheiro Poty, afirmando: ‘Pedro Poty, Regedor dos índios da
Paraíba (da infeliz nação), tendo caído prisioneiro dos portugueses a 19 de
fevereiro de 1649 na segunda batalha dos Guararapes, foi barbaramente tratado
por aqueles algozes, excedendo as crueldades perpetradas para consigo, as mais
desumanas que se possa imaginar. Era constantemente açoitado, sofreu todas as
espécies de tormentos, foi atirado preso por cadeia de ferros nos pés e nas
mãos, a uma escura enxovia, recebendo por alimento unicamente pão e água, e
realizando ali mesmo durante seis longos meses as suas necessidades naturais.
Resultou daí, que, decorrido os seis
meses, vendo aqueles sanguinários que de um ânimo tão firme nada se podia
conseguir por meio de torturas ou promessas de honra, cargo nem fortuna,
tiram-no do escuro subterrâneo onde tanto sofrera, sob o pretexto de mandá-lo à
Bahia, mas cujo plano era matá-lo, cruelmente, o que depois concretizaram.
Esquecimento e resgate - Acerca da omissão da maioria dos historiadores
sobre a presença marcante de Poty na fase da ocupação holandesa, Fernandes de
Lima assinala:
Pedro Poty, considerado herege,
apóstata, sujeito na época às penas da inquisição por aceitar uma religião
repudiada pelos que defendiam a colonização portuguesa, não poderia merecer a
devida consideração pelos historiadores de antanho quase sempre propensos a
exaltar o poder triunfante.
Outro
prestigiado historiador paraibano, Horácio de Almeida, também não-evangélico,
registra:
Pedro Poty, natural da Baía da Traição,
esteve na Holanda até 1631, tendo recebido aprimorada educação, tanto no
conhecimento da língua, que falava e escrevia corretamente, como no da religião
reformada, do qual se tornou fervoroso adepto.
Pedro Poty caiu no esquecimento duas
razões (...) Ter tomado partido contra os vencedores da guerra de ocupação e
ter professado uma religião que os portugueses abominavam.
Por
sua vez, Souto Maior, garimpando arquivos na Holanda, encontrou documentos que
comprovam indubitavelmente o destacado desempenho de Poty como líder de sua
gente. Entre os papéis, há uma citação do historiador holandês Johannes de Laet,
que, no seu livro Nouveau Monde, anotou ter estado várias vezes com os indígenas
levados à Holanda e que eles aprenderam o holandês e a doutrina da religião
cristã reformada.
Culminou
Pedro Poty sua trajetória de superação das condições adversas em que nasceu e
foi criado, com uma derrota? Absolutamente não. Jamais são derrotados os que
lutam convictamente por um ideal legítimo que buscam atingir.
Poty
foi um proclamador do Evangelho no Brasil-criança do século 17. Pioneiro da
evangelização no Nordeste, foi um dos primeiros a defender a Graça
transformadora do Cristo de Nazaré no território nacional.
Foi
cruelmente assassinado, é verdade, mas o Jesus, ao qual ele servia com tanto
entusiasmo e dedicação, asseverou certa vez: “Quem crê em mim ainda que morra, viverá.”
Nas
mansões da eternidade, quando se fizer chamada para o galardão das recompensas
da graça e do amor de Deus, lá estará o índio Pedro Poty, nosso compatriota e
nosso irmão, que, três séculos e meio depois do seu martírio, embora quase
anônimo, permanece como um paradigma de coragem e de firmeza moral e
espiritual.
Mas
enquanto não chega esse dia, nós, evangélicos brasileiros, precisamos prestar,
sem maiores delongas, um TRIBUTO À
MEMÓRIADE PEDRO POTY.
Do
livro Antologia - Primeira Coletânea de Textos Seletos,
da Academia Evangélica de Letras do Brasil (Rio de Janeiro: AELB, 2012)
Josué Sylvestre, Membro emérito da AELB
(Cadeira no 40), da qual foi Presidente no período de 2000 a 2008, é escritor,
historiador e jornalista. Pertence também à Associação Nacional de Escritores
(Brasília-DF), à Academia Paraibana de Letras (João Pessoa-PB) e à Academia de
Letras de Capina Grande - PB
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