terça-feira, 10 de dezembro de 2019

As incríveis aventuras de uma Bíblia


Certa ocasião uma jovem viúva olhava pela janela de sua casa. Ela residia próxima a uma importante praça da cidade de Dublin. A sala estava elegantemente mobiliada, tudo respirava conforto e até opulência, porém aquela mulher parecia ser infeliz.
A senhora Blake era uma católica romana fervorosa, que praticava o seu credo conscientemente, mas, nos últimos tempos sentia-se pesarosa de espírito por ter praticado muitas coisas hediondas na vida. As práticas religiosas, penitências, orações, nada lhe traziam qualquer satisfação. Não podia livrar-se do pesado fardo.
Ela havia contado sua mágoa ao seu confessor. Seguindo as suas ordens, encarregara-se de praticar várias obras de caridade; porém, embora parecendo ser interessante, a sensação pecaminosa pesava mais e mais em sua alma. O confessor era um padre muito jovem, agradável e atraente. Ele deu-lhe plena absolvição dos pecados, todavia não trouxe nenhuma consolação.
Um dia, estando ela meditando, bateram à porta. Antes que tivesse tempo de conciliar os pensamentos, o padre entrou na sala. “Que poderei fazer para levantar o seu espírito e remover essa triste expressão do seu rosto?”. “O senhor é tão amável e tem feito tudo o que está ao seu alcance, porém o peso de que lhe falei continua oprimindo a minha alma”. “Escute”, disse ele, “já resolvi o que deves fazer. Há um homem que vem a Rotunda amanhã e que é capaz de lhe fazer sorrir e torná-la feliz. Vá ouvi-lo”. “Senhor padre!...” “Não! Nenhuma palavra! Não admito desculpa. Ordeno-lhe que vá; tem mesmo que ir”.
O padre explicou que um famoso ator cômico, bem conhecido naquela época, ia apresentar-se a um público elegante e que, em sua opinião, isso seria a melhor coisa para ela. Não valia a pena protestar. Ela não poderia desobedecer ao seu conselheiro espiritual. Ele já estava lhe trazendo uma entrada gratuita para o espetáculo. E assim, na tarde do outro dia, a senhora Blake dirigiu-se ao local indicado, onde grandes cartazes anunciavam o espetáculo. Ela tinha que ir; fora-lhe ordenado que fosse.
A Rotunda, como todos os cidadãos de Dublin sabem, tem sob o seu telhado mais de um salão público. Ali há um grande coliseu, o salão das colunas e mais uma ou duas salas. Além disso, também há diferentes entradas. O que aconteceu foi que a senhora Blake se enganou na entrada para o espetáculo. Em vez de seguir a multidão que adentrava para um determinado recinto, ela notou uma pequena fila de pessoas dirigindo para um outro lugar. Seguiu-a e encontrou-se num dos salões menores, e ali esperou.
Estranhou que ninguém lhe pedisse a entrada. Pensou que mais tarde poderia retificar esse fato. Não teve muito tempo que pensar, pois logo levantou-se um cavalheiro que apareceu anunciando um hino e de repente ela lembrou-se que havia cometido um lamentável erro, entrando pela porta errada. Na verdade, o que se realizava ali era um culto protestante. Por ser muito tímida e sensível, sair daquele lugar, à vista de toda aquela gente, se tornou numa impossibilidade. Que fazer? Resolveu retirar-se no fim do hino, sem que chamasse a atenção das pessoas.
Foi o que ela tentou fazer. Em sua preocupação de sair o mais depressa possível, seu guarda-chuva cai ruidosamente de tal forma que muitas pessoas se viraram para trás para ver o que tinha acontecido. Aterrorizada com o incidente, deixou-se cair numa cadeira e quase desejou sumir pelo chão adentro.Seguiu-se um profundo silêncio e então uma voz, a do cavalheiro, elevou-se em oração. Ela não pôde deixar de escutar, pois nunca até aquele dia ouvira coisa semelhante. Era tão diferente das orações que havia em seus livros de devoção. Aquele homem, tão reverente, parecia muito feliz enquanto orava. Tudo aquilo a impressionou muito.
A oração terminou e o orador anunciou a leitura de uma passagem da Escritura sobre “o perdão dos pecados”. De todos os assuntos do mundo, era justamente aquele que ela mais desejava ouvir. Viesse o que viesse agora, não se importou no que o seu confessor iria dizer. Podia ele fazer o que quisesse, ela haveria de ouvir aquilo.Dos primeiros dezoito versículos de Hebreus, dez foram lidos. O orador, de uma maneira simples, expôs o ensino, até que tudo ficou claro como água cristalina. O único sacrifício, oferecido uma vez, o perdão livre e pleno concedido àqueles que o pedirem em nome de Jesus – tudo ilustrado com várias outras passagens do Novo Testamento formou o assunto daquela pregação. E tal como o solo ressequido embebe as chuvas de verão, assim aquela pobre alma recebeu a verdade maravilhosa! Nunca, até então, havia escutado semelhante mensagem! O orador terminou e após outra oração a reunião foi concluída.
A senhora Blake sentiu que essa era uma oportunidade única em sua vida. Enchendo-se de coragem dirigiu-se à extremidade do púlpito e perguntou ao pregador de quem eram as palavras lidas. Surpreendido com tal pergunta, ele desceu e foi logo abordado com muitas inquirições que se ofereceu para escrever algumas referências bíblicas, a fim de que ela pudesse estudá-las em casa. Quando soube que aquela senhora não possuía Bíblia, interessou-se sobremaneira por aquele caso.“Eu vou emprestar-lhe a minha Bíblia”, disse ele. “Queira ler as passagens sublinhadas nas páginas que dobrei. Agradeceria muito se me devolvesse o Livro daqui a alguns dias. Ele é a coisa mais preciosa que possuo”.
A senhora Blake agradeceu-lhe muito e foi depressa para casa, cheia de alegria em seu coração, com uma nova luz em seus olhos. Como se sentia diferente! Não era mais aquela criatura que há algumas horas antes dera na direção da Rotunda!
Nos dias seguintes ela se esqueceu de tudo, suas tristezas, seu fardo. Menos do seu tesouro. Leu e releu as passagens indicadas e também muitas outras. A luz brilhou no seu entendimento. O peso de espírito rolou para um túmulo aberto. A paz de Deus encheu seu coração. Afinal chegou o momento de devolver a Bíblia. Mais uma vez estava ela entregue ao seu novo estudo e de tal maneira absorvida nos pensamentos que não percebeu o toque da campainha. Alguém entrou na sala subitamente! Era o confessor! Ele estava ali, diante dela, lhe observando! Ele reparou logo em duas coisas: o seu gesto de embaraço e ao mesmo tempo uma serena placidez no seu olhar, como ele nunca tinha visto. “O que aconteceu?”, perguntou ele. “Eu nunca soube se aquele espetáculo lhe agradou ou não, e, como não a vi no domingo passado, pensei que estava doente”.
Tomada de surpresa pelo inesperado acontecimento, a senhora Blake perdeu o seu autodomínio. Era sua intenção manter esse assunto em segredo, pelos menos durante algum tempo. Mas agora não se conteve, e com a simplicidade de uma criança contou a história toda: o engano do salão, a tentativa de evadir-se, as palavras ouvidas, o Livro emprestado, e no fim de tudo a alegria e a paz que enchia o seu coração.
Ela falava com os olhos postos no chão; porém ao levantá-los, sentiu o espírito gelar-lhe de terror ao ver o olhar do homem que estava à sua frente. Era cheio de raiva. Nunca até então ela havia visto semelhante fúria expressa num semblante. “Dê-me esse livro!”, disse ele rispidamente. “Ele não me pertence!”, exclamou ela tentando em vão detê-lo. “Dê-me!”, foi a resposta; “senão perderá eternamente a sua alma. Esse herege por pouco a lança no inferno. E nunca mais, nem ele nem a senhora, hão de ler este livro”.Agarrando a Bíblia enquanto falava, meteu-a violentamente no bolso, lançando um olhar terrível para a mulher e saiu apressadamente da sala.
Ela sentou-se paralisada. Ouviu a porta fechar-se e lhe pareceu que alguma coisa no seu coração também se fechava, deixando-a aterrorizada. Aquele olhar terrível a perseguia por onde andava. Somente os que nasceram e foram criados na igreja romana conhecem o horror indescritível que a concepção do poder dos sacerdotes pode inspirar. Mas, logo em seguida, ela pôs-se a pensar também no orador que tinha lhe emprestado a Bíblia. O seu endereço estava lá escrito, mas era impossível lembrar-se dele e não sabia para onde escrever. Isto era muito triste!Os dias foram passando lentamente, e o seu visitante, outrora sempre bem-vindo e atualmente tão temido, não voltara mais. Ia renascendo a coragem e por fim passados uns quinze dias ou mais, ela resolveu aventurar-se para fazer uma visita ao padre. Era necessário fazer um enorme esforço para reaver o Livro e restituí-lo ao seu legítimo dono.
O padre, por nome João, vivia a certa distância e a casa dele ficava junto a um convento no qual ele era professor. A senhora Blake dirigiu-se para lá e bateu à porta. Uma freira a atendeu. A freira ficou visivelmente sobressaltada ao ver a senhora Blake. Ao ouvi-la perguntar pelo padre os seus olhos chamejaram por um momento. Imediatamente seu rosto ficou rígido e o seu gesto frio. Disse: “Sim, o senhor padre João está em casa. Ele está no quarto. Não quer entrar e vê-lo?”.
A freira a empurrou até o quarto e assim que a senhora Blake entrou, ela sobressaltou-se! O corpo inerte do padre João estava num caixão! Morto!
Antes que ela voltasse a si do choque, a freira sussurrou nos ouvidos estas palavras: “Ele morreu amaldiçoando-a. A senhora deu-lhe uma Bíblia e ele encarregou-me de lhe dizer que a amaldiçoava; sim, amaldiçoava-a no seu último alento. Agora vá embora!” Antes que ela tivesse tempo de se aperceber do que tinha sucedido, encontrou-se na rua, com a porta fechada atrás de si.
Várias semanas transcorreram. O perfume da primavera passou sobre a terra, despertando folhas e flores à vida e à beleza. Uma tarde estava a senhora Blake ponderando nos acontecimentos dos últimos meses. Alegrou-se mais uma vez pela alegria de estar perdoada. Ela havia comprado uma Bíblia para as suas leituras diárias. Os velhos erros em que havia sido educada tinha-os renegado, um por um. Mas havia em seu coração um certo desgosto que não podia apagar. Como era triste, muito triste, a breve enfermidade do padre e a sua morte repentina! O seu último olhar! As suas últimas palavras! Aquela terrível mensagem!
Por que havia ela de ter sido tão abençoada, levada ao abrigo da paz, cheia de alegria celestial, e ele, sim, porque não teria as mesmas palavras bíblicas produzido igual mensagem a ele? Por que será, pensou ela, que um Deus tão bom, cheio de amor, permitiu isto? Naquele momento a criada fez entrar na sala uma senhora. Aquela senhora estava coberta com um véu espesso. Ela estava irresoluta. Antes que a senhora Blake pudesse falar, a mulher disse: “A senhora não me conhece com esta roupa, mas vai ver daqui a pouco quem sou eu”, disse ela levantando o véu e mostrando o rosto da freira que lhe entregara a mensagem de maldição. A senhora Blake recuou um passo, perguntando a si mesma o que viria ainda a acontecer, mas a sua visitante acalmou os seus temores, e prosseguiu: “Tenho duas coisas a dizer-lhe e vou ser muito breve, pois estou com pressa. Em primeiro lugar peço-lhe que me perdoe a horrível mentira que lhe disse naquele dia. Eu já pedi perdão a Deus. O padre João morreu abençoando-a de todo o seu coração.
No dia anterior ao da sua morte, ele encarregou-me de lhe dizer que ele mesmo também tinha encontrado o perdão por meio daquele Livro e que, através da Eternidade, ele a abençoaria por ter a senhora levado a ele o conhecimento do Salvador. E agora a senhora perdoa-me, sim?” “Pois não! E do fundo do meu coração”, retorquiu a senhora Blake espantada. “Mas porque a senhora disse aquilo?”. “Porque eu a odiava. Eu amava o meu confessor e odiei a senhora por ter-lhe mandado para o inferno, segundo eu cria. Agora ouça: eu senti enorme desejo de ler aquilo que o padre João tinha lido. Depois do funeral não pude resistir a curiosidade de examinar o Livro. Fiquei fascinada e li mais e mais, até que eu também encontrei perdão e paz no meu Salvador. Há várias semanas estudo a Bíblia e agora ela está aqui. Por tudo isto, esta tarde fugi do convento e vou partir para a Inglaterra esta noite, mas senti que devia vir aqui restituir a Bíblia e dizer-lhe que eu também durante toda a minha vida a bendirei por me ter ensinado, através deste Livro, a maneira de encontrar o perdão dos meus pecados. Adeus! Deus a abençoe! Vamos nos encontrar no Céu!”
Uma breve despedida e a mulher saiu para fora da casa, desaparecendo.Afinal de contas, seria tudo um sonho? Agora uma pequena Bíblia achava-se sobre a mesa, diante da senhora Blake. Não, não era um sonho, mas sim, uma gloriosa realidade. Aquele Livro pequeno, sem ter uma voz viva para expor os seus ensinos, naqueles dois casos tirou três almas preciosas das trevas e transportou-as para a Luz.
Há de se imaginar como ficou o dono da Bíblia ao ser-lhe restituída, com esta maravilhosa história! Contudo, o que disse Aquele que enviou a Palavra a desempenhar a sua missão?: “Assim será a minha palavra que sair da minha boca; ela não tornará para mim vazia, antes fará o que me apraz e prosperará naquilo para que a enviei”, Is 55.11. 

J. H. Townsend, A Seara, CPAD

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