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Eis a entrevista.
ISRAEL BELO - Aprendi a ler aos nove anos, por motivo de saúde. Como eu tinha uma otite média crônica, com crises periódicas e com longas internações, não pude freqüentar escola antes. Minha irmã foi quem me alfabetizou. Logo depois, ganhei um livro de poemas (Canções da primavera) e também passei a escrevê-los. Comecei, portanto, pela poesia.
No ginásio, com 13 anos, já no Rio de Janeiro, junto com outros colegas, fundei um jornal no então Instituto Batista Americano, chamado Fatos sem Fotos, numa paródia a uma revista de grande circulação nacional, de propriedade da família Bloch. Minha vocação era o jornalismo e o ensino.
Na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em que fiz Comunicação, participei de publicações alternativas, sempre com poemas. Ainda universitário, fui incluído numa antologia de poetas cariocas. No final desses cursos, assumi a editoria de uma revista para a juventude batista (Mocidade Batista, depois Juventude Batista) e depois fundei outra só para estudantes (Campus). Em seguida, atuei como professor do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil nas áreas de História e disciplinas afins.
A poesia foi se tornando marginal. Pratiquei traduções do inglês.
E meu primeiro livro próprio foi de história (As cruzadas inacabadas: uma introdução à história do cristianismo na América Latina). Então, voltando ao começo da sua pergunta, posso dizer que me tornei escritor porque não podia ser um atleta.
ENFOQUE - Que maiores dificuldades tem percebido para que indivíduos adquiram uma melhor formação e conseqüente elaboração de opiniões consistentes?
ISRAEL BELO - Quem lê pode não escrever, mas quem não lê não pode escrever. Devia ser proibido. Tem gente que nunca leu um livro e quer escrever um. Quem quer escrever, seja em que gênero for, precisa ler muito, sobretudo poesia, crônica e ficção. Quando eu era filho de seminarista, um missionário guardou num porão toda a sua biblioteca, e eu me refugiava lá diariamente. Li todas as crônicas de Humberto de Campos.
Nas férias, quando voltava para Vitória, li todas as obras de Machado de Assis. Li todo José de Alencar, Graciliano Ramos, Castro Alves. Li muito Érico Veríssimo, João Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade e tantos outros. Só não li os estrangeiros, com exceção de Dostoievski e Fernando Pessoa, que não há como não ler.
Quem quer escrever tem que ler muito, desbragadamente, desesperadamente. Nada substitui a leitura, o instrumento civilizatório por definição. Ver televisão sem ler emburrece. Ficar na internet sem ler emburrece. Tem que ler, ler, ler.
ENFOQUE - A igreja evangélica está empenhada em oferecer um bom processo de formação, seja pessoal ou profissional?
ISRAEL BELO - Entre as organizações sociais, a igreja é a que mais estimula a leitura e a formação das pessoas. Falo a partir do meu contexto. Civilização e protestantismo combinam perfeitamente pela exigência do livre-exame da Bíblia. Nos púlpitos que povoaram minha vida, a começar pelo pastor Saturnino José Pereira (em Campo Grande, Vitória), sempre houve estímulo à leitura. Ele era um grande orador, e seu sermão, do qual não entendia tudo, deixava claro que estudava para pregar. Sem falar no meu pai, que não era um estilista, mas tinha uma biblioteca notável para seu tempo e seu lugar. A igreja sempre foi estimulante para mim. Devo tudo a ela.
ENFOQUE - Por que há ainda certa indiferença e acomodação por parte da própria igreja para com o péssimo conteúdo que muitos líderes fornecem às suas ovelhas?
ISRAEL BELO - A televisão vem moldando nossa forma de ser, não apenas de comunicar. O meio televisivo é, por natureza, superficial. A imagem já vem pronta.
O texto permite que o leitor imagine. A televisão tem moldado a cultura, transformando-a em entretenimento. A cultura do entretenimento tem moldado nossos cultos. Acho que o centro do culto é a pregação. E um bom sermão exige muito preparo. Um bom sermão precisa de 15 horas de preparo.
É mais fácil ao pregador, então, apelar para a historinha ou para o grito, para a repetição de idéias.
As igrejas devem liberar seus pastores de atividades burocráticas. Pastor é profeta. Profeta precisa de tempo para trabalhar com as palavras, para colocar o ouvido na boca de Deus.
ENFOQUE - O que tem observado de precário e inadmissível no ambiente evangélico de hoje?
ISRAEL BELO - Há precariedade no preparo. Estou convencido, por exemplo, de que quatro anos de estudo num seminário é pouco, mas tem gente oferecendo curso de formação pastoral ou teológica em semanas. É uma irresponsabilidade nutrida pelo ego. Um pastor mata tanto quanto um médico ou talvez mais. Uma cirurgia errada pode ter conserto. Uma alma ferida, muitas vezes, não tem salvação, tamanho o estrago, tamanha a culpa carregada. Precisamos de pastores com melhor preparo, para atender à sua comunidade e à comunidade que o cerca. O desafio no século 21 será pior que o do século 19. Esta precariedade deixa espaço para as tragédias da demonização da vida e da teologia da prosperidade, algumas desenvolvidas sem escrúpulo e para fins próprios de enriquecimento. Meu consolo é que com Deus não se brinca.
ENFOQUE - Você já teve algum tipo de engajamento na esfera política, mesmo como militante?
ISRAEL BELO - Nunca participei de política partidária, mas todo o universo batista me achava comunista, quando eu era jovem. Na universidade, tive um poema censurado pela ditadura, o que me tornou um herói em minha classe. Uma estupidez, já que o poema era muito ruim, como o é a maioria dos meus poemas.
O ensaísmo livrou meus leitores de um péssimo poeta. Sempre postulei o envolvimento social da igreja. Meu primeiro livro, só publicado 30 anos depois (O que é missão integral – editora MK), propunha um envolvimento total nesta área. Ainda penso a mesma coisa. Mudaram as grifes (responsabilidade social, teologia da libertação e missão integral), mas precisamos da mesma preocupação, cada vez mais, que era a mesma de Jesus.
ENFOQUE - Com sua experiência como editor, já tendo trabalhado na Unimep, por exemplo, como avalia o mercado editorial evangélico?
ISRAEL BELO - Ainda não temos mercado. Não se pode falar em mercado quando um bom livro vende dois mil exemplares por ano. Philip Yancey já sai com cem mil vendidos. A diferença nos ajuda a perceber a diferença. Temos avançado pouco, infelizmente.
ENFOQUE - Você passou por uma forte experiência emocional com a perda de seus pais. O que apreendeu disso como homem, como pastor, como líder de expressão?
ISRAEL BELO - Minha mãe e meu pai, Loydes e Derly Azevedo, morreram em maio de 2000, depois de curtas enfermidades. Dela, eu estava distante fisicamente, mas meu pai morreu sob meus cuidados. Eu estava começando no pastorado. Ele ficou feliz ao me ver pastor 24 anos depois de ter terminado o seminário. Esteve no meu concílio, se orgulhava de mim.
E eu me orgulho dele – um grande pregador, um grande evange-
lista – , coisa que não sou
Quando fui enterrar meu pai em Vitória, minha igreja (a mesma até hoje: Igreja Batista em Itacuruçá) chorou comigo no culto fúnebre, e alguns me acompanharam ao cemitério. Faltei no domingo seguinte. No outro também pensei em não ir, mas minha esposa, cheia de sabedoria, me aconselhou o contrário, lembrando que a mensagem que prego devia servir para mim. Gosto de pregar sobre a esperança.
Ainda hoje, sempre que me refiro ao meu pai do púlpito, a voz embarga. Não escondo a emoção, e por que eu o faria?
ENFOQUE - Você tem sido um líder expoente na comunidade evangélica. Que tipo de preço tem pago por isso e que sentimentos mais o ameaçam a perder o rumo certo?
ISRAEL BELO - Não me vejo absolutamente nessa condição. Eu me vejo apenas como israel (com letra minúscula mesmo). Funções são passageiras; não integram a minha personalidade. Tenho medo da vaidade. Ela tem derrubado muita gente, mais que o sexo, mais que o poder, mais que o dinheiro. Jesus foi tentado nessa área.
ENFOQUE - Em suas várias funções atuais, como conjuga família e vida pessoal, e o que procura evitar?
ISRAEL BELO - Este é um esforço titânico e exacerbado, como dizia meu antigo professor Roque Monteiro de Andrade, no seminário.
A pressão me fez permanentemente refletir sobre meus limites e minhas limitações. Tenho consciência de que, ao fazer tantas coisas, faço todas mal. Em algumas áreas, a graça de Deus supre minhas lacunas; em outras, o cuidado de Deus me chama à responsabilidade. Posto na balança, ando em falta.
ENFOQUE - Uma de suas colunas mais antigas chamava-se Prazer de Ler. O que considera uma leitura prazerosa e como as pessoas podem buscar isso?
ISRAEL BELO - A melhor leitura é a ficção. Um bom romance é uma escola de língua e de pensamento. Infelizmente, tenho estado longe dos romances por falta de tempo, mas estou louco para voltar a eles. Ler poesia, que demanda recolhimento, é muito prazeroso. Ler a Bíblia é uma descoberta a cada verso. O duro é achar tempo para tantas viagens pelas páginas.
ENFOQUE - E do ponto de vista do escritor, o que considera relevante para a produção de uma boa obra? Baseado em quê você escreve seus livros? Em experiências pessoais, anotações do cotidiano, inspirações divinas ou conseqüências de suas reflexões intelectuais?
ISRAEL BELO - Escritor precisa de ócio, e eu só tenho negócio (não-ócio), embora todo no Reino de Deus. Sou um privilegiado: só faço o que gosto e ainda recebo por isto. Cada livro tem uma história. Os primeiros estavam voltados às necessidades do mundo acadêmico, que era o meu.
Hoje não sou um escritor, sou um pregador. Meus livros nascem em sermões. A cada semana escrevo dois sermões, que prego em minha igreja. Alguns são desenvolvidos em séries, que permitem uma extensão maior. Essas séries podem se tornar livros, que, depois de prontos, nunca leio. Eles não resistiriam à minha crítica; o crítico poupa o autor, e ambos continuam amigos, e escrevendo.
Dois elementos estão presentes: as necessidades que minha observação capta e as revelações que a leitura da Bíblia faz saltar. Sou muito organizado. Faço um plano anual de sermão. Antes do final do ano, planejo o que vou pregar (tema e texto) ao longo do ano seguinte. Isto é muito bom: dá uma tranqüilidade enorme. Quando leio um livro e me deparo com uma frase indispensável, já sei onde vou usá-la. Quando estou lendo a Bíblia, sei em que sermão vou desenvolver aquele texto. Quando leio uma notícia no jornal, sei onde posso usar essa informação.
ENFOQUE - Que livro lhe deu mais trabalho e qual foi o mais prazeroso de escrever?
ISRAEL BELO - O livro mais trabalhoso foi A celebração do indivíduo, minha tese de doutorado em Filosofia. Foram anos de pesquisas.
O mais prazeroso foi Dia a dia com Deus, por causa de seu contexto. Toda semana, eu escrevo sete meditações bíblicas de 900 caracteres cada e que são publicadas no boletim da nossa igreja. Dia a dia com Deus foi resultado da compilação desses textos. O mais útil, depois do didático O prazer da produção científica, foi Diante da depressão; eu era completamente ignorante sobre o assunto.
Um dia, orando na igreja, devo ter falado alguma bobagem, e um psicanalista presente me advertiu: “Israel, depressão é uma doença”. Fui estudar o assunto e, a partir da experiência de Elias na caverna, escrevi os estudos que viraram os capítulos do livro.
Meu melhor livro ainda vou escrevê-lo, se Deus me permitir. Gostaria que fosse sobre a culpa, porque eu sou um apaixonado pela graça. Em nossa igreja, quando cantamos, e sempre o cantamos, o hino “Maravilhosa Graça”, título do melhor livro de Philip Yancey, eu me derramo.
A graça de Deus é tudo: ar, água, alimento.
ENFOQUE - O que na vida lhe traz inquietação?
ISRAEL BELO - Não sei se quero morrer lendo ou se quero morrer escrevendo. Ler é viver. Viver é ler. Falando sério, sei que um mundo justo é impossível por aqui, mas me inquieta o excesso de injustiça. Nosso mundo é desigual demais. Não dá para ser um pouco menos? Como escrevi no livro
O que é missão integral, embora o Reino de Deus só virá na parousia (volta de Cristo), é nosso dever lutar por estruturas sociais melhores agora. Chega de sonhos despedaçados.
Quando eu era menininho em Santo Onofre, na região do Contestado Minas-Espírito Santo, vi um homem amarrado e arrastado por um cavalo. Deve ter sido a primeira teofania (aparecimento de Deus) na minha vida: foi Deus me indicando o caminho da indignação contra aquilo que atenta contra a bondade dEle. Tertuliano estava errado quando disse que tudo o que é humano é estranho ao cristão. Sou mais Amós. Sou mais Tiago. Na verdade, tudo o que é estranho ao coração de Deus tem que ser estranho ao meu.
Indigno-me contra mim mesmo quando deixo de me indignar contra aquilo que atenta contra a justiça de Deus. Meu modelo é Jesus, entrando indignado no templo transformado em mercado. Indigno-me contra aqueles que não se indignam mais. Sem indignação, a injustiça não encontra freios à sua ambição.
A indignação é uma espécie de autodefesa. Por isso, gosto do que escreveu Martin Niemöller, ainda na Alemanha nazista: “Primeiro, eles investiram contra os comunistas, mas eu não era um comunista e me calei. Depois, eles investiram contra os socialistas e os sindicalistas, mas eu não era nenhum deles, e me calei. Depois, eles investiram contra os judeus, mas eu não era um judeu e me calei. Quando eles investiram contra mim, não havia ninguém para me defender”.
Acho que Richard Dawkins e sua teoria do gene egoísta não estão com nada, mas se não temos nenhuma razão para a indignação contra a indignidade, eis uma bem forte: é para nos protegermos de ataques contra nós mesmos.
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