sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Alma Azeda


Ora, Israel amava mais a José que a todos os seus filhos, porque era filho da sua velhice; e fez-lhe uma túnica talar de mangas compridas. Vendo, pois, seus irmãos que o pai o amava mais que a todos os outros filhos, odiaram-no e já não lhe podiam falar pacificamente (Gn 37.3,4).

Se houve uma pessoa com motivos de sobra para cultivar a amargura, esta era José. Arrebatado precocemente das mãos de seu pai, teve o que parecia naquele momento, uma carreira de sucesso tragicamente interrompida e o seu futuro literalmente indo para o brejo. José, porém, livrou-se da amargura, um buraco ainda maior do que aquele em que seus irmãos o jogaram.
José foi vítima de um tratamento diferenciado, que gerou a inveja de seus irmãos. Um dossiê foi confeccionado contra este pobre rapaz. Ele recebia mais atenção, ganhava roupas de marca, ocupava lugares de honra, e recebia elogios públicos e comparações vantajosas. Como conseqüência, tornou-se alvo da violência e das artimanhas dos irmãos. Foi dado como definitivamente desaparecido. É o ódio tomando forma física, materializando-se: “odiaram-no e já não lhe podiam falar pacificamente”. A inveja, com o tempo, se transformou em ódio, o ódio se transformou em desejo de vingança, que por sua vez, ganhou contornos físicos. “De longe o viram e, antes que chegasse, conspiraram contra ele para o matar”.
O próximo passo foi uma conseqüência natural do aprofundamento desse estado de beligerância. O mais bondoso, ao invés de se opor abertamente contra todas aquelas elucubrações, sugeriu: “Não derrameis sangue; lançai-o nesta cisterna que está no deserto, e não ponhais mão sobre ele”. Rúben chegou a esboçar um ato de misericórdia, mas ficou apenas na intenção de voto.
Depois que José foi jogado dentro de um poço e vendido como escravo, passou por poucas e boas. Foi um golpe atrás do outro. Tornou-se vítima de terríveis injustiças, calúnias, maus-tratos e prisões. Da cova José foi, finalmente, guindado a uma posição de honra. Ele estava nas mãos do Altíssimo.
Parece-me que em meio a tudo isso, José passou por um processo traumático de cura, ao qual respondeu positivamente. A vida, como um cirurgião impiedoso, um verdadeiro açougueiro, decepou partes importantes de sua história, de seus sentimentos, de sua família e de sua herança.
Todo esse tratamento, porém, produziu docilidade. Ele sofreu intensamente, mas não permitiu que o seu coração perdesse a doçura, bem ao estilo de Che Guevara (Resistir si, perder la ternura jamás). Agora, já como senhor do Egito, a maior potência política, bélica e econômica do mundo de então, disse, logo que nasceu seu primeiro filho Manassés: “Deus me fez esquecer todos os meus sofrimentos e toda a família do meu pai” (Gn 41.51). Embutiu isso no nome de seu filho, erguendo uma placa comemorativa de sua cura. Manassés significa Deus me fez esquecer.
José não fingiu que o problema não existia, ele lutou contra as suas memórias. Jamais fuja daquilo que você teme. Como disse Max Lucado: “Ignorar, fingir que não sente nada, não resolve. O sentimento de raiva não vai embora, só fica no porão”.

Extraido do livro Queima de Arquivo de Ubirajara Crespo
Editora Naós

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