sábado, 24 de novembro de 2007

Entrevista com Russell Shedd

"Doutor Bíblia"

Virgínia Rodrigues


(entrevista concedida à Revista Enfoque Gospel)

Ele foi, oficialmente, o primeiro colunista da Enfoque. Em 2001, tive o prazer de lhe fazer o convite pessoalmente em sua própria casa, em São Paulo, onde me recebeu com carinho e toda a humildade, que lhe é constante. Enfoque nem existia no papel, mas ele acreditou no projeto, deu-me a sua confiança e foi um dos primeiros pilares de nossa revista.

Russell P. Shedd é PhD em Novo Testamento pela Universidade de Edimburgo, Escócia, fundou a Edições Vida Nova há 44 anos e é consultor da Shedd Publicações. É também missionário da Missão Batista Conservadora no Sul do Brasil com sede nos EUA, já lecionou na Faculdade Teológica Batista de São Paulo, viaja pelo Brasil e exterior fazendo conferências em congressos, igrejas, seminários e escolas de Teologia e é membro da Igreja Batista do Jardim Consórcio, em São Paulo.

Esse doutor em conhecimento e humildade, é autor de vários livros já bem conhecidos (veja box) e tem ainda uma Bíblia com seu nome, onde escreveu os comentários de rodapé. No dia 10 deste mês, pastor Shedd completa 77 anos. A ele dedicamos estas páginas para que, através de suas palavras de esclarecimento e ensino, o leitor também seja presenteado. De volta à sua casa, foi edificante notar que cinco anos se passaram e esse amigo e colunista continua repleto de excelentes palavras para oferecer. Saí de lá pensando: “Como o mundo precisa de gente assim! Como a gente cresce ao conversar com esse homem!”

ENFOQUE – Há mais de 40 anos no Brasil, como contempla o panorama da teologia no país? Que diferenças percebe entre o período de sua chegada ao país e os dias de hoje?

SHEDD – Uma das mais notáveis diferenças que observo é a imensa abertura para a existência de denominações e grupos evangélicos diferentes. Antes o cenário era bem definido, com paredes altas para que ninguém saísse de tal igreja e fosse para outra diferente. Quando cheguei ao Brasil em 1962, foi justamente no período em que as denominações estavam se dividindo por causa da força do pentecostalismo. Os tradicionais não aceitavam muito e um pastor não admitia que sua ovelha fosse para uma igreja da Assembléia de Deus, por exemplo.

ENFOQUE – Ou seja, na época não havia muita tolerância com o diferente?

SHEDD – Exatamente. Hoje, a liderança é mais tolerante, mais aberta. Talvez seja o espírito pós-moderno que permite diferentes opiniões e idéias. Eu tenho a minha, você tem a sua e vamos conviver. Não dá para excluir tudo só porque não há concordância. Essa é uma diferença que impressiona. Antes, havia batistas, presbiterianos, metodistas bem definidos e era quase uma transgressão migrar de uma denominação para outra, principalmente se era para uma igreja pentecostal.

ENFOQUE – Mas hoje a abertura tem relação com os grupos religiosos tanto quanto com as manifestações nas igrejas, não acha?

SHEDD – Sim, antes não se batia palmas em uma igreja batista, por exemplo. As pessoas não levantavam as mãos em igrejas mais tradicionais. Falar em línguas e presenciar manifestações divinas eram experiências apenas dos ambientes pentecostais.

ENFOQUE – Por que razão acha que essas mudanças acabaram acontecendo?

SHEDD – Acho que há várias razões: o espírito da pós-modernidade, a capacidade do homem em se adaptar e se adequar, e a ação do Espírito Santo. Acho que hoje já caiu a idéia de que uma igreja é absolutamente certa, que a tradução bíblica que recebi é absolutamente certa e os outros estão absolutamente errados. Eu me lembro que nos reunimos na Faculdade Teológica a fim de considerar que todas as denominações têm alguma coisa para nos ensinar. Mas isso não foi aprovado. Era 1963. Tais coisas também aconteciam por causa do orgulho que nós herdamos.

ENFOQUE – Como percebeu as conseqüências desse orgulho?

SHEDD – Veja quanta coisa ocorreu com os batistas a fim de nos humilhar. Aconteceram quedas morais, financeiras, administrativas. Instituições quebraram, bens se perderam etc.

ENFOQUE – Que análise faz desse novo cenário de igrejas que se formou, com o surgimento de tantas denominações novas como a Universal do Reino de Deus, Igreja da Graça, Sara Nossa Terra? O que isso desencadeou?

SHEDD – Entendo que podemos aceitá-los como irmãos. Por que temos que combatê-los como hereges?

ENFOQUE – O senhor acha que tudo isso trouxe um pouco de confusão do que significa ser evangélico hoje?

SHEDD – Há mais de 30 anos, o Evangelho era muito definido aqui. Existiam presbiterianos, batistas, metodistas e congregacionais. E a Assembléia de Deus era marginalizada. Agora a situação mudou completamente. Os países do chamado Primeiro Mundo estão muito mais fragilizados espiritualmente do que aqui, ainda que muita gente não reconheça. Eles perderam a fé. Pelo menos, a Universal coloca em todos os lugares que “Jesus Cristo é o Senhor”. Enquanto na Alemanha, por exemplo, ser pastor é uma profissão. Há igrejas lá em que no estatuto está escrito que o pastor tem que ser crente.

ENFOQUE – E quem é marginalizado hoje?

SHEDD – A Universal ainda é, com certeza, discriminada por grande parte dos evangélicos. E uma das razões é que eles não procuram a gente, não participam de nenhum evento nosso. Parece que não querem se chegar. É mais ou menos como era a Assembléia de Deus nos anos 60, época em que eu nunca recebia convite da denominação para pregar. Hoje, quase um terço das minhas conferências são nas Assembléias de Deus.

ENFOQUE – Como avalia o desenvolvimento do mercado editorial no Brasil?

SHEDD – Sabemos que a cultura brasileira não é de leitura, é de televisão. Poucos aqui lêem e, mesmo assim, a leitura feita por evangélicos só aumenta. As pessoas se interessam mais, compram mais livros, procuram títulos novos, buscam assuntos. E as editoras investem. Ninguém está jogando dinheiro fora. E os preços dos livros no Brasil não são baratos. Se o público compra é porque interessa.

ENFOQUE – Como acha que a igreja pode transformar quantidade em qualidade, já que o percentual de evangélicos só aumenta no país?

SHEDD – Fazer isso é complicado pelo simples fato de que não há nenhum controle. Ninguém pode controlar a vida e as atitudes de ninguém. Penso que o importante é que existam boas escolas teológicas, melhor preparo para a liderança; que existam líderes de referência e boa literatura para as pessoas que não estejam satisfeitas com o que têm recebido e desejam algo mais substancial. Que haja, pelo menos, uma ação.

ENFOQUE – Logo, é preciso contrapor um Evangelho que tem sido muito superficial, não?

SHEDD – Sim, mas não apenas com campanhas disso ou daquilo. Acho que o caminho deve ser bíblico, buscando a glória de Deus, e não uma vantagem. Tem gente que vive fazendo uma espécie de barganha com Deus.

ENFOQUE – Em sua opinião, o crente pode perder a salvação?

SHEDD – Biblicamente, não. Mas o que ele mesmo pode demonstrar é que nunca foi realmente salvo. Para nós, salvação é uma decisão inicial. A Bíblia ensina a salvação como algo que começa com uma matrícula chamada batismo. E pelo resto da vida você continua aprendendo. Se alguém não aprende, mostra que não se entregou. Então a decisão foi falsa.

ENFOQUE – Há tantas pessoas que estiveram por tanto tempo na igreja, comprometidos com Deus e não estão mais. O que dizer sobre isso?

SHEDD – Talvez estivessem ali por ansiedade, medo, circunstâncias, conveniência. Talvez por uma tentativa de ver se Deus iria lhes dar algum benefício que tanto queriam. Não estavam pensando em Deus, mas em si mesmos.

ENFOQUE – Que modismos vieram e se foram em todos esses anos?

SHEDD – Boa pergunta. Tem tanta coisa que veio e ficou, tantas que não existem mais. Hoje não se cantam mais hinos, não se faz mais os cultos de quarta-feira nas igrejas. A Escola Bíblica Dominical também está fora de moda. Começou em 1800 e está acabando. Muitos sentem falta dessas coisas. Há outras coisas que não sei se podemos chamar de modismo, mas já tivemos os milagres dos dentes de ouro e das folhas que brilhavam como fogo sob o frio de reuniões de oração nos montes. Ninguém fala mais disso.

ENFOQUE – E o que acha de manifestações como essas?

SHEDD – Acho legítimas, saudáveis, reais. Porque algumas desapareceram, eu não sei. Mas creio que foram, no geral, manifestações angelicais, embora outras tenham sido demoníacas. A Bíblia diz que os demônios fazem as mesmas coisas que os anjos, só que eles não estão servindo a Deus, estão servindo ao seu deus. Demônios também fazem cura. Mas essa manifestação de cura vem para confundir ou para que as pessoas, de uma forma indireta, glorifiquem o demônio.

ENFOQUE – O que fazer para que as pessoas leiam mais a Bíblia, já que hoje existem tantos recursos, como comentários e versões?

SHEDD – O mais importante de tudo é uma tradução que o povo entenda. Essa é uma das vantagens da Bíblia que possui linguagem contemporânea. Outro ponto para tornar a Bíblia mais interessante é mostrar que ela soluciona os problemas. A gente tem problemas, mas não sabe que a Bíblia tem a solução. A questão é que não basta ler, mas seguir.

ENFOQUE – O que pensa sobre angeologia? Como atuam os anjos?

SHEDD – Anjos são ministradores dos dons espirituais: profecias, dons de línguas, discernimento de espíritos demoníacos. A gente não sabe se um anjo é de luz ou não, eles enganam. Então eles [os anjos verdadeiros] têm que nos dar a possibilidade de discernir se vêm de Deus. Em síntese, os anjos são ministradores do Senhor.

ENFOQUE – Mas se eu não tenho o dom de línguas, por exemplo, eles podem me acompanhar?

SHEDD – Não tenho anjo me acompanhando, tenho o Espírito Santo.

ENFOQUE – Então não acredita que cada pessoa tenha o seu anjo?

SHEDD – Tem, se for pequenino. Foi o que disse Jesus em Mateus 18.10: “Os seus anjos (dos pequeninos) sempre vêem a face do meu Pai que está no céu”. Pequenino quer dizer criança, pessoas começando a vida cristã. E talvez haja acompanhamento angelical para casos especiais. Anjos se manifestam e acompanham por causa da sua utilidade, para a glória de Deus, pois eles vêm para ministrar. Os dons não são para nós mesmos, são para o benefício da igreja. Então, certas pessoas são muito mais abertas aos dons. Crianças são mais sensíveis à presença de anjos.

ENFOQUE – O que acha de uma certa “rejudaização” que acontece em algumas igrejas?

SHEDD
– É uma prática que não vai ajudar. Sou contrário a elas. Com o Novo Testamento aconteceu o fim da lei, o fim de todas aquelas práticas do Velho Testamento. Por que voltar para trás, para o que existia antes de Cristo? Voltar é perder o próprio Cristo, que veio para o novo.

ENFOQUE – Como tem avaliado o nível dos pastores de hoje?

SHEDD – Eles precisam realmente estudar a Palavra, usar os argumentos que estão na Palavra. Enfim, a Palavra deve entrar na cabeça do pregador, que precisa ter a mente de Cristo.

ENFOQUE – O que sente em relação à sua participação na Enfoque durante esses anos?

SHEDD – Bem, a revista me impôs uma disciplina que eu não tinha antes. Cada mês tenho de saber e escrever alguma coisa. Tenho que procurar escrever sobre algo. É desafiante. E, durante cinco anos, fui percebendo que a revista tinha a possibilidade de se manter. Porque a primeira pergunta, quando comecei, foi: “Será que essa revista vai dar certo?” E ela resistiu. A revista está firme, tem textos muito bons. Não sei se meus artigos estão valendo a pena para os leitores (risos), mas tenho gostado desse desafio.

O QUE SHEDD JÁ PUBLICOU

Andai Nele
A Justiça Social e a Interpretação da Bíblia
Disciplina na Igreja
A Escatologia do Novo Testamento
Alegrai-vos no Senhor
O Mundo, a Carne e o Diabo
Nos Passos de Jesus
Lei, Graça e Santificação
Imortalidade
A Solidariedade da Raça
Justificação
A Escatologia e a Influência do Futuro no Dia-a-dia do Cristão
A Oração e o Preparo de Líderes Cristãos
Fundamentos Bíblicos da Evangelização
Adoração Bíblica
O Líder que Deus Usa
Palavra Viva
Teologia do Desperdício
Missões – Vale a Pena Investir?
Criação e Graça – Reflexão Sobre as Revelações de Deus
Avivamento e Renovação

Bíblia em Ação (CD-ROM)
Comentários de rodapé da Bíblia Vida Nova e da Bíblia Shedd, publicados por Edições Vida Nova e Shedd Publicações.

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